Novas formas de trabalho | Revista Fleury Ed. 40

Menos contratos, mais flexibilidade de horário, menos pressão de chefe e mais autonomia. O mundo do trabalho está mudando (de novo), mas nem tudo são flores nesse novo caminho.

Não precisou de muito tempo no mercado de trabalho tradicional para Karina Ruiz Cardoso, 30 anos, designer, perceber o que queria da vida: ser livre. No jargão contemporâneo, isso significa que ela desejava se tornar uma nômade digital. Depois de cinco anos exaustivos em uma agência de publicidade, economizou dinheiro e pediu as contas. “Nunca vi sentido em trabalhar onze meses para só ter um de férias – quando eu ia conseguir conhecer todos os países que eu queria?”, conta, sobre seus questionamentos. Em junho de 2017, foi para Portugal, o ponto de partida de uma viagem por 21 países, incluindo a Tailândia – paraíso dos nômades digitais do mundo por seu baixo custo de vida, belas paisagens e internet boa.

Karina viajou o mundo como nômade digital e hoje trabalha em casa ou em cafés.

Luiz trocou a carreira em um grande banco pela gestão horizontal de uma startup.

Carla, depois de trabalhar  a distância por oferta da empresa, voltou ao escritório e faz home office quando precisa se concentrar.

Um ano depois, Karina percebeu que quase não tinha tido trabalho no período, gastara todo o dinheiro economizado e precisava voltar e recomeçar. De volta ao Brasil, encontrou uma terceira via e, hoje, trabalha como prestadora de serviços, em home office (trabalhando de casa). Para ser, de fato, uma nômade digital, Karina percebeu que precisaria passar mais tempo em um só lugar, ter uma estrutura mínima de trabalho, rotina, lugares e rostos conhecidos.
A arquiteta Silvia Arruda, trinta anos mais velha e com mais bagagem nas costas, entendeu que para ser nômade digital não é necessário sair pelo mundo com uma mochila e um
computador. Em 1999, ela saiu da bem-sucedida empresa de móveis que tinha aberto com a família. “Tinha virado uma burocrata, pagadora de contas”, diz. Especializou-se em cenografia e, desde então, presta serviços como autônoma. Chegou a ter escritório, mas os custos fixos não justificavam o espaço. A arquiteta radicalizou e virou nômade. Hoje trabalha de casa, no café da esquina, em qualquer Sesc (organização para a qual presta bastante serviço), e até do espaço que o Google oferece para trabalhadores como ela.
Karina e Silvia fazem parte de uma tendência mundial, a dos trabalhadores sem emprego e local fixo de trabalho. Com a internet, para muitas profissões, passou a não fazer mais sentido estar preso a uma mesa, dentro de um escritório. De acordo com uma pesquisa feita pela plataforma Fiverr, uma empresa global que oferece serviços de freelancers do mundo todo, 80% das pessoas que trabalham de forma remota dizem que querem continuar assim para sempre. Mais da metade (58%) acredita que a maior vantagem em ser autônomo é a flexibilidade: poder trabalhar quando se sente mais produtivo. Liberdade, conveniência, produtividade, redução de custos são outros fatores citados.


Mais autonomia no emprego fixo

Até mesmo quem ainda pertence ao modelo convencional de trabalho vem experimentando novas formas de trabalhar. Carla Ione Zanocelo Martins da Silva, de 47 anos, está na mesma empresa, desde 2001, onde entrou como analista de sistemas júnior. Três anos depois, ela engravidou e, ao mesmo tempo, o marido foi transferido para Brasília. Ela não teve dúvidas e pediu as contas. Para sua surpresa, a empresa ofereceu outra solução: trabalhar em esquema de home office em Brasília. “Comecei a dar suporte de casa e a viajar para atender alguns clientes, como já fazia antes”, conta.
Cinco anos depois, o marido foi transferido de novo, desta vez para o Rio de Janeiro, mas ela preferiu voltar para São Paulo, onde foi promovida a gerente. Seu tipo de contrato mudou de CLT para Pessoa Jurídica (PJ) – mas com direito a férias e 13º, que ela conseguiu negociar. “Hoje, home office para minha função é muito complicado porque tenho muitas reuniões, mas quando preciso focar, posso trabalhar de casa”, diz Carla. E, depois da experiência dela em Brasília, outros funcionários da empresa passaram a fazer home office também.


“Dar certo ou errado só depende da gente.” Luiz Carlos Pires

“Faz dez anos que não consigo tirar férias por mais de duas semanas, tempo  insuficiente para cabeça e corpo descansarem.” Silvia Arruda


Luiz Carlos Pires, de 31 anos, também deixou para trás a vida CLT, mas não o emprego fixo. Após treze anos em um dos maiores bancos do país, onde se tornou chefe bem jovem, Luiz percebeu que seu tempo ali tinha se esgotado. Para ter uma ideia ouvida, era preciso passar por tantas esferas hierárquicas e burocráticas que o então gerente de marketing não via mais sentido naquilo. Aceitou o convite de uma startup da mesma área em que ele já trabalhava, mas com um frescor que ele ainda não conhecia. A transição não foi tão simples: Luiz chegou a ter crises de ansiedade, medo de estar trocando o certo pelo duvidoso, e foi questionado por algumas pessoas, mas sabia que o novo trabalho tinha mais a ver com seu estilo de vida. “Aqui, dar certo ou errado só depende da gente”, afirma Luiz. A equipe autônoma, com uma gestão mais horizontal, onde todos participam, o enche de energia para tocar o dia a dia.

Livres, soltos e sobrecarregadosA revolução digital, ainda em curso, está moldando as relações trabalhistas: de um lado, empresas enxugam quadros e gastos, de outro, os trabalhadores têm rotinas mais flexíveis. Na avaliação do professor Giovanni Alves, do departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp, em Marília (SP), esse novo modelo incorpora, com mais desenvoltura, a ideia do empreendedorismo. “Ao exercerem uma atividade laboral com maior componente imaterial (conhecimento), e terem autonomia no processo de trabalho, novos trabalhadores cultivam a ideia de patrões de si mesmo”, diz.
Por outro lado, esse trabalhador do novo milênio está completamente só – não apenas literalmente falando (queixa de 30% dos entrevistados da pesquisa Fiverr, que sentem falta de comunidade e sentem a solidão) como em suas queixas, demandas e direitos. A ilusão de autonomia desaparece quando percebem que, muitas vezes, não há muita margem de negociação para o que fazem. “Executam seu trabalho de modo autônomo, é claro, mas delimitado por prescrições dadas do contratante, a empresa”, lembra o professor. Muitos autônomos se veem em jornadas às vezes mais estressantes que as convencionais. Silvia Arruda sabe o que é isso. “Faz dez anos que não consigo tirar férias por mais de duas semanas, tempo insuficiente para cabeça e corpo descansarem”, lamenta Silvia, que agora, para os 60 anos, planeja mais uma transição de carreira: quer fazer mestrado e dar aulas.
O fato é que a flexibilização veio para ficar, e o trabalhador pode se beneficiar disso em muitos aspectos, mas desde que desenvolva uma consciência dos seus limites pessoais – do tempo de sua jornada ao valor do seu trabalho. E novas formas de organização em torno das relações trabalhistas terão de surgir para que o desequilíbrio – e a solidão – não sejam tão grandes.